terça-feira, 2 de novembro de 2010

Lembranças de Morrer 
(Álvares de Azevedo)


"Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
 
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
- Como as horas de um longo pesadelo  
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
 
Como o desterro de minh' alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade - é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
 
Só levo uma saudade - é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas....
De ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
 
De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos - bem poucos - e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoidecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
 
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios, me encostou a face linda!
 
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores....
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
 
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
 
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecidas,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
- Foi poeta - sonhou - e amou na vida..
 
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh' alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
 
Mas quando preludia ave d' aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear a lousa!"



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